Janaína

(...)A minha vontade era pegar Janaína no colo para que eu pudesse cobrí-la com o meu corpo em uma tentativa burra de protegê-la da dor que em segundos lhe assaltou a alma. Eu teria afagado seu rosto desconhecido e pedido que se acalmasse - e isso não me tiraria da condição de cenário.(...)

Cheguei bem em tempo de sentir tudo.
O último sinal que avisa o fechamento do portão da fábrica tinha acabado de soar. As três moças de nosso interesse tinham sido as últimas a passar pelo portão sujo de graxa e ferrugem. O sol, alcoviteiro dos maiores acontecimentos, ainda espiava por cima do muro do terreno enquanto as damas checavam seus pertences.
As coisas pareciam em seus eixos: a rua suja, a cor da fábrica de tecidos, os mendigos dormindo na calçada, o barulho do trem passando por detrás do muro, a língua batendo no céu da boca, a vaidade implícita nas sílabas, uma mão roçando o cabelo em rabo de cavalo, o poc-potoc-poc dos sapatos apressados para chegar em casa, a conversa desnecessária de sempre.
Se todos os papos corriqueiros que precedem as palavras duras previssem o futuro, este bla-bla-bla que Janaína e suas amigas desenrolam agora, sem preocupação, sem pretexto, teria emudecido, tal o espanto que o destino preparou para a pobre moça.
Quanto a mim, eu devia estar naquele estado de esponja em que a gente toma pra si qualquer dor, qualquer alegria, absorvendo tudo e deixando o corpo vomitar descontroladamente de volta pro mundo. Não me iludo pensando que eu teria evitado algo se soubesse de minha condição. Só assim eu pude enxergar as mudanças na imagem de Janaína.
O anunciador de todo o caos toca e vibra na bolsa pendurada no braço da dama. Alô, pergunta inocente nossa protegida, Janaína, onde você está, replica chorosa a voz no alto-falante, Indo pra casa, Por que, do outro lado da linha o silêncio. Amanda acabou de morrer atropelada, retorna em resposta a voz do celular.
É nessas horas que dá pra duvidar da capacidade do maior instrumento do homem, o cérebro. Todos os outros membros que compunham o corpo de Janaína já haviam recebido a mensagem, só a bendita razão que relutava em acreditar. O braço, por exemplo, em reflexo, já buscava apoio pra que todo o resto não despencasse no cimento da calçada. Pois as pernas, coitadas, cederam com o peso da pancada - os joelhos encontraram a dureza do concreto. E pra fazer jus àquele ditado que diz que, pra superar uma dor, deve-se sentir uma maior, as mãos de Janaína começaram a arrancar os cabelos da pobre coitada. Agarrava, prendia, puxava e desprendia um tufo. Agarrava, prendia, puxava e mais um tufo. O corpo tentava gritar. Era como se a dor transbordasse. Sua boca se abriu no que teria sido o mais alto dos gritos, se ainda lhe restasse forças para emitir algum som. Essa bendita fenda no meio da cara queria dividir a cabeça em duas partes, separando razão do resto.
Janaína nunca foi uma mulher com muitos dotes sensuais, não tinha um bumbum avantajado, seus seios não saltavam dos decotes. Mas pra Amanda era tudo perfeito. Cada parte de suas carnes encaixava. E cada átomo, que compunha nossa pobre moça, sentia a necessidade de viver só pra continuar formando esse quebra-cabeças. É por isso que, em resposta a essa dor, os seios de Janaína começaram a murchar. Não como se diminuíssem de tamanho, mas como se estivessem sendo sugados por dentro da pele. Como se uma força centrífuga quisesse juntar tudo num ponto só.
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A minha vontade era pegar Janaína no colo para que eu pudesse cobrí-la com o meu corpo em uma tentativa burra de protegê-la da dor que em segundos lhe assaltou a alma. Eu teria afagado seu rosto desconhecido e pedido que se acalmasse - e, ainda assim, isso não me tiraria da condição de cenário.
O tempo das coisas tinha parado. Tudo isso aconteceu no espaço menor que um segundo. As coisas tinham se tornando, pura e simplesmente, expectadoras desse show cruel. Nada existiu nesse meio tempo, senão Janaína.
E a moça era agora uma concha cuja todo o conteúdo que já chegou a possuir lhe tinha sido roubado. Vazia. Vazia. O tempo talvez lhe preencha esse espaço-vácuo, mas, até isso acontecer, Janaína estaria à deriva, recebendo no rosto um sol que já não esquentava mais como antigamente. Seria como um público apático das coisas que a rodeiam.
Joguei uns fiapos de mim no chão da calçada, era o que tinha ficado na minha roupa quando a moça explodiu. Quis que ela os encontrasse.

O Peso e a Cor das Gerações

Os copos devem ter subido cheios e descido vazios várias vezes até a hora que os encontrei. Para ser mais preciso, quando eu cheguei, as línguas de fogo já se agitavam em suas bocas fedorentas de álcool. Trocaram alguns rosnados, alguns grunhidos, e daqui a pouco os passos que subiam apressados para chegar à suas respectivas casas pararam para ver o que acontecia. A arquibancada fora montada e sem juiz, jogados à sorte, os jogadores haviam começado a partida de horrores. À sua esquerda, homens (?) gritando no ápice de felicidade que os hormônios da diversão causam; à sua direita, homens (?) gritando no ápice de fúria que a testosterona causa. O cenário era a floresta de concreto de sempre. Como para climatizar o ambiente, uma TV estrategicamente posicionada dentro do bar tocava as músicas que tornava o álcool todo muito mais atraente. Mas a selvageria era tanta que não se podiam distinguir os berros “harmônicos” de quem cantava, nem no volume incomodo que só os bares conseguem deixar suas músicas.


Quando o segundo ato do espetáculo começou, a torcida – que na verdade torcia pro “todo” – se inflamava em labaredas de adrenalina. E na velocidade de socos, chutes, cabeçadas e mães putas que pariam filhos, um dos homens (?), aparentemente o comprador do espetáculo todo – pois tudo que sobrara da violência mencionada também lhe havia sido dirigido -, é acertado por uma garrafa vazia. Esta que havia sido manejada por uma mão furiosa, encontra seu fim na cabeça raspada do tal “causador”. E antes de “partir desta para melhor”, o recipiente da droga que bancava o show todo, deixa sua marca no mundo: abre um buraco na cabeça do homem (?).


A mão vai à cabeça. Os olhos se fecham fortemente em uma expressão de dor. Uma voz feminina grita, pede que chamem a polícia. O vermelho já chegava à boca e ele ainda insistia na luta. Sua masculinidade toda gritava que isso não ficaria assim. E toda a honra que seu pênis lhe proporcionava forçava-o a recolher um dos cacos do chão e tentar inutilmente acertar mais alguém. A mão aperta com mais força o ferimento.


Daquele buraco e por entre seus dedos podiam-se ver suas gerações escorrerem vermelhas, encharcarem suas orelhas, rolarem pelo seu pescoço e serem absorvidas por sua camiseta regata. Em gotas de história vivida, apressadas, caiam em grandes pingos no asfalto ainda quente. Eu tive certeza que se aproximasse meu nariz daquela poça eu sentiria o cheiro de gerações embriagadas, masculinas, selvagens.


“Meu Deus! Ninguém vai fazer nada?!”, foram as palavras da mesma voz feminina de antes. Dois homens (?), que também participavam do sobe e desce dos copos, se aproximam do Homem-Vermelho e acalmam seus braços, suas pernas, sua voz, mas não o buraco em sua cabeça. Os três se afastam do bar, vão a algum lugar onde pudessem limpar o sangue, tapar o buraco e tratar a raiva. Pelo menos, por mim mesmo, assim desejei que tivessem feito. E ainda desejo.


Apesar de tudo, senti ter pagado pelo ingresso assim como os outros homens (?) que agora se dispersavam. Entristeci-me. Minha coluna curvou, meus pêlos devem ter crescido, meu apêndice voltou a ser útil, meus caninos avançavam na fenda da boca e, se tivesse achado uma pedra dando mole, teria feito fogo ou afiado uma lança pra caçar.

Nascidos-Pra-Lamentar

Olá,
Gostaríamos de cumprimentá-los com um "Bom Dia", "Boa Tarde" ou "Boa Noite" bem animado, mas a vida nunca está tão boa assim. Deus sabe que não existe um diazinho sequer que não esteja difícil. Toda noite a gente liga a TV pra ouvir nosso companheiro jornalista, que nos traz as informações quentinhas. E é sempre coisa ruim que a gente vê nesse mundão . Ainda bem que tem gente que "luta" pela gente, como é o caso do jornalista em questão. Ele sim é gente como a gente. Você precisa ver como a veia da garganta dele salta quando "mete o pau" nesses políticos malditos. É até engraçado ver, ele fala e a gente balança a cabeça quase automaticamente, concordando com tudo. E quando ele anuncia, com o tom de sempre, sensacionalista, aqueles números se referindo às contas bancárias dos homens? Passou de dois reais, que já é plural, a gente acompanha a notícia com um sonoro "Oohhhhh". A vida deles sim que é vida.

Por falar em programa, um que a gente não perde nunca é o BBB. A gente "agarra" um dos participantes e torce por ele até o fim. Não perdemos um episódio sequer. Mesmo porque vem logo depois da novela. Ah! Dá na gente uma inveja danada de ficar como eles, em uma casa como aquela, com piscina, festa de graça e rodeado de gente bonita, sem fazer nada, só esperando pra ganhar um milhão, de mão beijada. Aquilo sim é que é vida.

Mas a gente se conforma com o que tem e pede pra Deus todo dia pra tudo melhorar. Aliás, Deus é a melhor coisa de nossas vidas. Ah, como é bom pedir tudo que a gente quer pra ele. E, oh, ele, um dia, atende, viu? Pode pedir, eu garanto! Por exemplo, pra cidade que a gente mora, eu vivo pedindo pra Ele que uma alma boa de verdade um dia entre no poder. Os Nascidos-Pra-Lutar vivem dizendo que não adianta nada ficar rezando pra Deus, que tem que lutar, tem que mostrar pra eles que o povo está vivo. Que nada, temos é que deixar Deus resolver; o que nos resta é continuar pedindo, só isso. Quando ele atender, aquilo sim é que será vida.

Aliás, os Nascidos-Pra-Lutar são um bando de gente sonhadora que acha que vai conseguir alguma coisa se todo mundo se juntar. E não é que as pestes conseguem seguidores? Muitos de nós passaram pro lado de lá, por exemplo. Alguns de nossos filhos estudam, estudam, e daqui a pouco uma vizinha anuncia:
-Eita! Que esse menino tem sangue de Nascido-Pra-Lutar!
Pronto, aí a gente já vê que vai ser mais um traidor da causa. Mais um sonhador que vai se lascar todinho tentando mudar a gente também. Vai dar a vida dele toda pra isso, pra "vencer" é como eles chamam. A verdade, é que nada disso adianta. O que adianta mesmo é pedir pra Deus. Parece que tudo que eles conseguem fazer concretamente é nos mostrar que a nossa vida, sim, que não é vida.

Madame Éden

2 de Agosto de 2147

Caro amigo que tanto me acompanhou durante esses anos todos,

Como você bem sabe sou a quinta geração. A quinta do clã das Vingadoras Amaldiçoadas.

O motivo desta carta é porque está chegando a minha hora e eu preciso passar a maldição adiante. Escrevo às pressas, pois ainda me encontro no quarto do meu último trabalho executado. O corpo ainda nem esfriou. O meu, é claro. É minha oportunidade para lhe esclarecer o que você ainda não sabe.

Obviamente, você sabe que não me chamo Madame Éden. Chamo-me Juan Salvador, espanhol e devo estar com, mais ou menos, trinta e oito anos. Por mim, não lhe contava este nome. Não me sinto mais ligada a ele, assim como você também deve perder o seu. O lhe conto para que, como minha antecessora, o mundo não se esqueça de nós por, pelo menos, mais uma geração.

Vendo as fotos das quatro anteriores eu percebo o quanto eram lindas, fortes, magníficas. O mundo precisava saber quem somos. Seria o mínimo depois de tudo o que fizemos. Devo ter limpado mais de 2000 "Sugadores-Vigilantes" das ruas dessa cidade de bosta. Fiz melhor que isso, em quase todas às vezes usei um veneno que os fizesse sofrer bastante antes de morrer. Matei minha antiga existência porque acreditava que tomaríamos essa cidade de volta.

Parece-me pouco tudo o que fiz; para cada um deles que cai, 10 de nós se corrompe.

E como se não bastasse, você ainda estará sujeita a pegar uma doença maldita desses monstros. Sim, porque, amigo - ou amiga, já não sei mais como te chamo a partir de agora - uma das regras mais malditas de ser uma Vingadora é não alcoolizar o Sugador, nunca. Ele deve estar completamente consciente, pois, antes de matá-lo, você deve fazê-lo lembrar de todas as suas vítimas. E isso você sabe como fazer. Você já deve ter entendido tudo, então; não podendo alcoolizá-lo você terá que seduzi-lo. Apesar desta não ser uma tarefa difícil - tendo em vista os dias atuais - lhe cabe a tarefa de ser sedutora, ainda por cima, portanto, você deverá ser a travesti mais famosa, linda e desejada de toda a cidade. Todos devem conhecê-la para que sua fama, quem sabe, chegue aos ouvidos do ministro e você execute a tarefa que todas desejamos ter feito, destruir o criador desse pesadelo.

Tudo para salvar um povo que vende suas filhas para satisfazer a sede sexual dos Sugadores a troco de energia elétrica.

Você não deve, jamais, perdoar a sua vítima. Carregue o símbolo da viúva negra e não pense duas vezes antes de matar um Sugador. Se preocupe com a descrição de tudo, mas não torne disso um pesadelo para si mesma; as relações entre as pessoas em 2147 são tão evitadas e há tantos Vigilantes que será difícil perceberem que um deles sumiu.

O resto você descobrirá sozinha.
Boa sorte, minha amiga. Você sabe onde moro, tudo que tenho pertenceu um dia a outra Vingadora e, portanto, pertence agora a você também.

Lembre-se: a Maldição não deve parar, a menos que o poder volte a ser do povo.

Ass.: A Quinta Vingadora Amaldiçoada,
Madame Éden


(a história de Madame Éden é o começo de outra, mas que não cabe no momento...)

Tentativa Nº 2

Pode parecer maluquice, mas este é mais um post antecipando o recomeço dos meus escritos.
Há tempos não escrevo. Espero, para minha própria saúde mental e para a de vocês também, que as idéias não tenham enferrujado.
Espero não me limitar ao caos de um mundo pequeno.
Que o poço das idéias não seque! Que a poeira do corpo não pese!

Bem-vindo, Mim-Mesmo e Você-Também...

O Ponto Zero

Remarcando o 0.