domingo, janeiro 31, 2010

Janaína

(...)A minha vontade era pegar Janaína no colo para que eu pudesse cobrí-la com o meu corpo em uma tentativa burra de protegê-la da dor que em segundos lhe assaltou a alma. Eu teria afagado seu rosto desconhecido e pedido que se acalmasse - e isso não me tiraria da condição de cenário.(...)

Cheguei bem em tempo de sentir tudo.
O último sinal que avisa o fechamento do portão da fábrica tinha acabado de soar. As três moças de nosso interesse tinham sido as últimas a passar pelo portão sujo de graxa e ferrugem. O sol, alcoviteiro dos maiores acontecimentos, ainda espiava por cima do muro do terreno enquanto as damas checavam seus pertences.
As coisas pareciam em seus eixos: a rua suja, a cor da fábrica de tecidos, os mendigos dormindo na calçada, o barulho do trem passando por detrás do muro, a língua batendo no céu da boca, a vaidade implícita nas sílabas, uma mão roçando o cabelo em rabo de cavalo, o poc-potoc-poc dos sapatos apressados para chegar em casa, a conversa desnecessária de sempre.
Se todos os papos corriqueiros que precedem as palavras duras previssem o futuro, este bla-bla-bla que Janaína e suas amigas desenrolam agora, sem preocupação, sem pretexto, teria emudecido, tal o espanto que o destino preparou para a pobre moça.
Quanto a mim, eu devia estar naquele estado de esponja em que a gente toma pra si qualquer dor, qualquer alegria, absorvendo tudo e deixando o corpo vomitar descontroladamente de volta pro mundo. Não me iludo pensando que eu teria evitado algo se soubesse de minha condição. Só assim eu pude enxergar as mudanças na imagem de Janaína.
O anunciador de todo o caos toca e vibra na bolsa pendurada no braço da dama. Alô, pergunta inocente nossa protegida, Janaína, onde você está, replica chorosa a voz no alto-falante, Indo pra casa, Por que, do outro lado da linha o silêncio. Amanda acabou de morrer atropelada, retorna em resposta a voz do celular.
É nessas horas que dá pra duvidar da capacidade do maior instrumento do homem, o cérebro. Todos os outros membros que compunham o corpo de Janaína já haviam recebido a mensagem, só a bendita razão que relutava em acreditar. O braço, por exemplo, em reflexo, já buscava apoio pra que todo o resto não despencasse no cimento da calçada. Pois as pernas, coitadas, cederam com o peso da pancada - os joelhos encontraram a dureza do concreto. E pra fazer jus àquele ditado que diz que, pra superar uma dor, deve-se sentir uma maior, as mãos de Janaína começaram a arrancar os cabelos da pobre coitada. Agarrava, prendia, puxava e desprendia um tufo. Agarrava, prendia, puxava e mais um tufo. O corpo tentava gritar. Era como se a dor transbordasse. Sua boca se abriu no que teria sido o mais alto dos gritos, se ainda lhe restasse forças para emitir algum som. Essa bendita fenda no meio da cara queria dividir a cabeça em duas partes, separando razão do resto.
Janaína nunca foi uma mulher com muitos dotes sensuais, não tinha um bumbum avantajado, seus seios não saltavam dos decotes. Mas pra Amanda era tudo perfeito. Cada parte de suas carnes encaixava. E cada átomo, que compunha nossa pobre moça, sentia a necessidade de viver só pra continuar formando esse quebra-cabeças. É por isso que, em resposta a essa dor, os seios de Janaína começaram a murchar. Não como se diminuíssem de tamanho, mas como se estivessem sendo sugados por dentro da pele. Como se uma força centrífuga quisesse juntar tudo num ponto só.
...
A minha vontade era pegar Janaína no colo para que eu pudesse cobrí-la com o meu corpo em uma tentativa burra de protegê-la da dor que em segundos lhe assaltou a alma. Eu teria afagado seu rosto desconhecido e pedido que se acalmasse - e, ainda assim, isso não me tiraria da condição de cenário.
O tempo das coisas tinha parado. Tudo isso aconteceu no espaço menor que um segundo. As coisas tinham se tornando, pura e simplesmente, expectadoras desse show cruel. Nada existiu nesse meio tempo, senão Janaína.
E a moça era agora uma concha cuja todo o conteúdo que já chegou a possuir lhe tinha sido roubado. Vazia. Vazia. O tempo talvez lhe preencha esse espaço-vácuo, mas, até isso acontecer, Janaína estaria à deriva, recebendo no rosto um sol que já não esquentava mais como antigamente. Seria como um público apático das coisas que a rodeiam.
Joguei uns fiapos de mim no chão da calçada, era o que tinha ficado na minha roupa quando a moça explodiu. Quis que ela os encontrasse.

2 comentários:

eletricmanfred disse...

Ae lorran, já tava mesmo na hora de retornar a blogsfera.

Fernando disse...

Não sei se é o ambiente, ou o ato, mas alguma coisa (ou muitas delas) no texto me lembram a Clarice Lisepctor. Não me surpreenderia, vindo de você, que fosse uma referência direta.

Arrasô.